CADERNOS DE MEMÓRIAS PALMENSES
Vozes e Sabores da Cidade
Editorial
Palmas, desde sua fundação em 1989, é mais que um ponto no mapa. É um encontro de trajetórias, saberes e esperanças. Como capital planejada e habitada por migrantes de todas as partes do país, Palmas nasce todos os dias em cada história contada, em cada prato preparado, em cada quintal plantado e em cada lembrança compartilhada.
A Casa das Memórias Palmenses surge com o propósito de preservar essa memória viva, reunindo fragmentos que, juntos, formam o mosaico cultural da cidade. Este caderno é um desses fragmentos. Ele substitui a ação de webinars prevista no projeto original, respeitando os mesmos princípios: acesso democrático ao conhecimento, valorização do patrimônio imaterial e promoção da diversidade cultural.
Inspirado nos relatos coletados pelo projeto, nos textos publicados em nosso blog e em materiais de referência como "Palmas: história e identidade" (PMTO, 2014), "Raízes Culturais do Tocantins" (UFT, 2019) e "Fiat Palmax: diálogos sobre a gênese de uma cidade amazônica" (UFT, 2016), esta publicação é também uma homenagem à memória comunitária da capital tocantinense.
Sobre o Projeto
Este projeto tem como objetivo principal a criação de um museu virtual que funcione como um repositório digital dedicado à preservação e ao compartilhamento das valiosas histórias orais das pessoas que vivem na região do Cerrado, especialmente em Palmas (TO). A proposta busca fortalecer a identidade cultural local por meio da tecnologia social da memória, documentando e revitalizando tradições e experiências vividas nas comunidades urbanas e rurais da capital.
Com mais de 70% da população composta por migrantes, Palmas é uma cidade cosmopolita, marcada por múltiplas origens, sotaques e tradições. Ao trazer essas histórias para o domínio digital, o projeto pretende dar visibilidade às memórias afetivas, contribuindo para o reconhecimento da diversidade cultural e para a valorização das heranças imateriais.
O museu virtual é, assim, um espaço de escuta, de pertencimento e de reconstrução identitária, acessível a qualquer pessoa com acesso à internet. Ele representa também uma alternativa viável para territórios onde a presença física de museus ou centros culturais ainda é limitada.
A metodologia adotada se baseia em uma abordagem participativa, com coleta de histórias por meio de entrevistas gravadas em espaços móveis e com o apoio de termos de cessão de imagem. A plataforma digital é desenvolvida com foco na acessibilidade, em conformidade com as diretrizes WCAG 2.2, permitindo que todos possam navegar, ouvir e contribuir com o acervo.
Entre os objetivos específicos do projeto, destacam-se:
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Documentar e preservar a história oral da região;
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Promover a diversidade cultural de Palmas;
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Incentivar a educação patrimonial imaterial e o engajamento da comunidade;
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Utilizar a tecnologia para acesso e disseminação de conteúdo cultural.
Fontes e referências utilizadas:
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Oliveira, Maycon Silva de. A Educação Patrimonial como Prática Social na Construção do Pertencimento: A Experiência em Escolas de Palmas. UFT, 2023. Link
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Pereira, J. L.; Carvalho, L. F.; Santos, I. P. Palmas em três atos: entre o plano, a imagem e a prática. Revista Observatório, UFT, 2018. Link
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Governo de Palmas. Palmas: história e identidade. PMTO, 2014.
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IBGE. Cidades e Estados: Palmas - TO. Estimativas Populacionais e Dados Socioeconômicos. Link
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Santos, Josafá M. Raízes Culturais do Tocantins: Memória e Identidade. UFT, 2019.
Chegadas e Começos: histórias de migrantes em Palmas
"Quando cheguei em Palmas, ainda era tudo poeira e promessa. Vim de Imperatriz com minha mãe e meus dois irmãos. Na época, disseram que aqui teria terra, escola, tudo novo. A gente veio num caminhão emprestado, com colchão amarrado com corda. Moramos de favor num barraquinho coberto de lona azul. Tinha muita esperança. Meu pai ficou no Maranhão porque não acreditava nessa cidade nova no meio do mato. Mas nós acreditamos." Sebastiana Rodrigues da Cunha, 68 anos, Taquari, Palmas.
Assim começa uma das muitas histórias de quem fez de Palmas um novo lar. Desde sua criação em 1989, Palmas atraiu milhares de pessoas de outros estados, especialmente Maranhão, Pará, Piauí, Goiás e Bahia. Segundo dados do IBGE (2022), mais de 70% da população de Palmas é composta por migrantes. Essa miscigenação construiu uma cidade plural, com sotaques diversos e costumes entrelaçados.As histórias orais colhidas pela Casa das Memórias mostram o impacto dessa migração na formação da cidade.
Cada chegada trazia um ofício, uma fé, um modo de falar e de cozinhar. As casas de barro deram lugar a tijolos, mas o sentimento de “começo” ainda ressoa nas vozes das pessoas.“Cheguei aqui em 1994, nem ônibus tinha direito. Trabalhava na limpeza do hospital. Hoje minha neta vai ser a primeira da família a entrar na faculdade”, conta dona Celina, moradora da 604 Sul.“Eu vendia quebra-queixo na beira da rodoviária velha. Depois consegui um lote no Taquari. Hoje vejo meus filhos com seus comércios e tenho orgulho.
”Essas memórias constroem uma narrativa paralela à história oficial da cidade — uma história feita de improvisos, redes de solidariedade e reinvenção diária. E são elas que tornam Palmas mais do que uma capital planejada: uma cidade de afetos.
Sabores da cidade: memória, feira e comida de casa
A feira central de Palmas é muito mais que um local de comércio — é um espaço de encontro, troca e preservação das tradições culinárias que vieram de todas as partes do Brasil junto com os migrantes. Ali, a mistura de ingredientes, temperos e modos de preparar é um reflexo da diversidade cultural da capital.
Dona Maria, que veio do Piauí em 1992, lembra que a feira era onde a gente sentia cheiro de casa. “Eu vendia tapioca, mas a gente trazia tudo que tinha de nossa terra — maxixe, pequi, farinha de mandioca, e o caldo de cana que era doce como a infância”, conta. Esse caldeirão de sabores compõe um patrimônio imaterial da cidade que transcende o alimento e reforça a identidade das pessoas.
Estudos de Josafá M. Santos (2019) sobre a cultura do Cerrado ressaltam a importância da alimentação como elemento central da memória cultural: “Os alimentos nativos e as receitas tradicionais são veículos de transmissão de saberes e laços comunitários, sobretudo em regiões de fronteira e migração como Palmas. A presença das feiras livres na rotina da população palmense cria uma dinâmica social que mantém vivas as tradições orais e os saberes gastronômicos, promovendo um sentido de pertencimento e continuidade cultural. Para muitos, ir à feira é uma experiência que conecta passado e presente, preserva o vínculo com as origens e reforça o orgulho local.
“Minha mãe ensinou que o tempero mais importante é o amor e o cuidado. A comida de casa é o que me lembra quem eu sou”, diz Carlos, morador do Assentamento Entre Rios . Além dos ingredientes, as receitas são guardiãs de memórias afetivas que resistem ao tempo e às transformações urbanas. A cozinha palmense é, assim, um espaço de resistência cultural e celebração da diversidade.
Brincadeiras, quintais e infância no Cerrado
Na infância dos moradores de Palmas, os quintais não eram apenas espaços físicos, mas territórios de descobertas, aprendizado e alegria. Entre mangueiras, pés de jambo e pés de pequi, crianças criavam suas próprias histórias, jogos e rituais, misturando elementos da cultura local com as influências trazidas pelos pais e avós migrantes.
“Eu passava o dia inteiro correndo atrás de lagartixa, fazendo cabana com galhos e brincando de esconde-esconde no quintal da minha casa”, lembra João, 42 anos, que chegou em Palmas ainda bebê com a família do Maranhão. Essas lembranças mostram como o contato com a natureza do Cerrado e o convívio comunitário foram fundamentais para a formação da identidade dos pequenos palmenses.
As brincadeiras tradicionais — como roda, peteca, pular corda e pega-pega — atravessam gerações e se adaptam às mudanças do espaço urbano. Em muitos bairros, os quintais e as ruas ainda são locais onde se mantém viva a cultura popular, resistindo às pressões da modernidade.
A pesquisa de Pereira, Carvalho e Santos (2018) sobre o tecido social de Palmas ressalta que “os espaços públicos e privados, como ruas e quintais, são palco da construção da sociabilidade local, onde se transmitem costumes e valores”. Essa infância na interseção entre o urbano e o rural, entre a memória e o presente, reforça o sentimento de pertencimento e o vínculo afetivo com a cidade. É nesse terreno que as raízes culturais se aprofundam e se multiplicam, formando o tecido vivo da memória palmense.
Tradições, religiosidade e festas populares
A religiosidade é um dos pilares que sustenta a cultura de Palmas e suas comunidades. Apesar da cidade ser relativamente jovem, as práticas religiosas e as festas populares têm um papel central na vida social, reunindo moradores em torno de crenças, celebrações e manifestações culturais.
Palmas conta com uma diversidade religiosa significativa. Segundo dados do IBGE (2010), a população evangélica representa aproximadamente 35% dos moradores da cidade, um número expressivo que influencia diretamente as práticas culturais locais, eventos e a dinâmica comunitária. Essa presença evangélica convive e se entrelaça com outras tradições religiosas, como o catolicismo, além de manifestações afro-brasileiras e indígenas.
Muitos dos migrantes trouxeram consigo ritos e festividades que se adaptaram ao novo ambiente, criando uma mistura rica e plural. As festas de São João, de Nossa Senhora Aparecida, as celebrações da Semana Santa e as romarias são momentos que fortalecem a identidade comunitária e preservam o patrimônio imaterial da região.
Dona Maria, uma das moradoras mais antigas da 604 Sul, relata: “Aqui a gente faz a festa da padroeira com muita fé e alegria. É quando todo mundo se encontra, compartilha comidas típicas, canta e reza junto”.
Além das celebrações religiosas tradicionais, as igrejas evangélicas promovem eventos, cultos e encontros que também cumprem um importante papel social e cultural, oferecendo espaços de convivência e suporte comunitário.
Outras manifestações culturais, como o bumba meu boi, o folclore local e as festas de raízes africanas e indígenas, marcam presença e enriquecem o calendário festivo. A pluralidade de origens dos moradores contribui para um mosaico cultural vibrante, onde tradição e inovação caminham lado a lado.
Segundo Santos (2019), “essas festas e ritos religiosos não são apenas momentos de devoção, mas espaços de resistência cultural e de afirmação de identidades múltiplas, que dialogam com a história do Cerrado e seus habitantes”.
A vivência dessas tradições reforça o sentimento de pertencimento e permite que as memórias coletivas sejam transmitidas às novas gerações, garantindo a continuidade cultural em uma cidade que, apesar da juventude, já possui um rico patrimônio imaterial.
Topografias afetivas: quadras, ruas e memórias de lugar
Palmas é uma cidade planejada, com suas largas avenidas, quadras organizadas e espaços públicos cuidadosamente desenhados. Mas, para quem vive aqui, a cidade vai muito além do traçado urbano: ela é feita de lembranças, histórias e sentimentos ligados a lugares específicos — os bairros, as ruas, as praças e os quintais.Cada canto da cidade carrega uma memória, um nome que remete a uma história ou a uma experiência compartilhada.
Moradores contam que, apesar do planejamento rígido, a convivência entre vizinhos, as festas de rua, as brincadeiras nos quintais e as celebrações nos espaços públicos criam uma verdadeira topografia afetiva. Bairros como a 604 Sul, Taquaralto, Plano Diretor Sul e Norte não são apenas conjuntos de casas, mas territórios onde se formam redes de amizade e solidariedade. “Aqui na 604 Sul, a gente conhece todo mundo. As crianças brincam juntas e as famílias se ajudam. É uma extensão da nossa casa”, conta dona Luzia, moradora antiga.
A construção desses laços também é marcada pela presença das memórias dos migrantes, que trouxeram consigo referências culturais, modos de vida e até nomes para suas ruas internas e espaços de convivência. “No Taquari, temos uma pequena feira que virou ponto de encontro, onde a gente troca receita, conversa e lembra de onde veio”, relata Zé Carlos, feirante e morador local.Além disso, a ocupação dos espaços públicos reflete a diversidade cultural da cidade.
Festas comunitárias, rodas de capoeira, apresentações musicais e artesanato nos calçadões mostram como o planejamento urbano se mistura com o improviso e a criatividade popular. Segundo dados do IBGE (2022), Palmas apresenta um crescimento urbano acelerado, com áreas periféricas em expansão, mas mantendo ainda forte vínculo com a memória dos bairros tradicionais, que resistem às transformações.
Essa relação entre lugar e memória é fundamental para entender a identidade palmense, pois revela como o espaço físico é também um espaço simbólico, onde as histórias pessoais e coletivas se encontram e se perpetuam.Como explica Pereira et al. (2018): “A cidade planejada se torna viva através da experiência cotidiana de seus habitantes, que produzem sentidos e constroem identidades a partir da apropriação dos espaços urbanos”.
Anexos e Referências: estatísticas, mapas e fontes
Perfil Demográfico e Crescimento Urbano de Palmas
Segundo o IBGE (2023), Palmas tem atualmente cerca de 320 mil habitantes, sendo a capital mais jovem do Brasil. Cerca de 70% dessa população é formada por migrantes vindos principalmente do Maranhão, Pará, Goiás, Bahia e Piauí, o que contribui para a diversidade cultural local.
O crescimento populacional acelerado desde a fundação da cidade em 1989 gerou desafios urbanísticos, como a expansão periférica, ocupação irregular e demanda por infraestrutura pública. Dados do Plano Diretor da cidade indicam que áreas como Taquaralto, Plano Diretor Sul e Norte concentram grande parte do adensamento populacional.
Diversidade Religiosa em Palmas
Dados do Censo 2010 (IBGE) apontam que a população de Palmas apresenta significativa diversidade religiosa, com destaque para o crescimento das comunidades evangélicas que, juntas, representam cerca de 40% da população, refletindo um perfil religioso plural e em constante transformação.
Essa pluralidade religiosa está presente nas festas populares, nas práticas cotidianas e na construção do espaço público, com templos, igrejas e centros comunitários sendo referências importantes na paisagem cultural palmense.
Mapas e Representações Espaciais
A cidade é dividida em setores bem definidos, conforme o Plano Diretor, com destaque para:
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Plano Diretor Sul: setor central e administrativo, com grande concentração de comércio e serviços.
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Plano Diretor Norte: área em expansão, com desenvolvimento residencial e industrial.
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Taquaralto: bairro tradicional que mistura áreas urbanas e rurais, palco de forte atividade cultural e comercial.
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604 Sul: bairro residencial, conhecido pela forte coesão comunitária e atividades culturais locais.
Essas áreas constituem as principais referências espaciais para as histórias coletadas no projeto.
Fontes Bibliográficas e Referências Utilizadas
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Oliveira, Maycon Silva de. A Educação Patrimonial como Prática Social na Construção do Pertencimento: A Experiência em Escolas de Palmas. UFT, 2023. Disponível em: https://repositorio.uft.edu.br/handle/11612/5542
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Pereira, J. L.; Carvalho, L. F.; Santos, I. P. Palmas em três atos: entre o plano, a imagem e a prática. Revista Observatório, UFT, 2018. Acesso em: https://sistemas.uft.edu.br/periodicos/index.php/observatorio/article/view/4289
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Governo de Palmas. Palmas: história e identidade. PMTO, 2014.
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IBGE. Cidades e Estados: Palmas - TO. Estimativas Populacionais e Dados Socioeconômicos. Disponível em: https://cidades.ibge.gov.br/brasil/to/palmas/panorama
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Santos, Josafá M. Raízes Culturais do Tocantins: Memória e Identidade. UFT, 2019.
Considerações Finais
Este caderno busca não apenas apresentar dados e relatos, mas também valorizar as vozes que construíram Palmas. Ao reunir histórias orais, memórias e informações técnicas, o material oferece um panorama rico sobre a formação cultural, social e urbana da capital do Tocantins.
O fortalecimento da memória local contribui para o reconhecimento das múltiplas identidades que coexistem na cidade, promovendo um sentimento de pertencimento e respeito à diversidade cultural.

